29.11.20

Communitas

Cartoon de Donald Rooum

O conceito de anarquia carrega o peso de sua história essencialmente antiestatal. De Godwin a Kropotkin, passando por Proudhon e Bakunin, os teóricos fundadores dos movimentos anarquistas apresentaram esse termo como a designação de uma sociedade alternativa, o avesso de uma ordem coercitiva e imposta pelo poder. Essa sociedade que postulavam diferiria da existente devido à ausência do Estado - a síntese do poder desumano, intrinsecamente corruptor. Uma vez desmantelado e eliminado o poder do Estado, os seres humanos recorreriam (retornariam?) aos valores da ajuda mútua, usando, como Mikhail Bakunin vivia repetindo, sua capacidade natural de pensar e de se rebelar.

A fúria dos anarquistas, do século XIX concentrava-se no Estado - no Estado moderno, para ser preciso, uma novidade na época, que ainda não estava entrincheirado de modo suficientemente sólido para reclamar legitimidade tradicional ou basear-se na obediência rotinizada. O Estado empenhava-se em obter um controle meticuloso e ubíquo sobre todos os aspectos da vida humana que os antigos poderes haviam deixado para os recursos coletivos locais. Reclamavam o direito e os meios legais para interferir em áreas das quais os antigos poderes, embora opressivos e exploradores, mantinham distância. Em particular, incumbiu-se de desmantelar les pouvoirs intermédiaires, ou seja, as formas de autonomia local, de auto-afirmação comunal e de autogoverno. Sob ataque, as formas habituais de solução dos conflitos e problemas gerados pela vida em conjunto pareceram ser, para os pioneiros dos movimentos anárquicos, dadas de forma não-problemática e, portanto, "naturais". Também eram imaginadas como auto-sustentáveis e totalmente capazes de manter a ordem sob todas as condições e circunstâncias, desde que protegidas das imposições originárias do Estado. A anarquia, isto é, uma sociedade sem o Estado e suas armas de coerção, era visualizada como uma ordem não-coercitiva na qual a necessidade não se chocaria com a liberdade nem esta se colocaria no caminho dos pré-requisitos da vida em grupo.

O Weltanschauung do anarquismo inicial compartilhava com o socialismo utópico da época um forte sabor nostálgico (os ensinamentos de Proudhon e Weitiling simbolizando sua íntima afinidade); o sonho de sair da estrada em que se havia entrado com o nascimento de uma nova e moderna forma de poder social e de capitalismo (ou seja, a separação entre o negócio e o lar) - de volta ao conforto, mais romantizado do que genuinamente livre de conflito, da unidade comunal de sentimentos e ações. Foi nessa forma inicial, nostálgica e utópica, que a ideia de anarquia se estabeleceu na aurora da sociedade moderna e na maioria de suas interpretações político-científicas.

Mas havia no pensamento anarquista outro significado, menos demarcado pelo tempo, oculto por trás de sua ostensiva rebelião antiestatal e, por essa razão, facilmente negligenciável. Esse outro significado é próximo daquele da imagem da communistas de Victor Turner:

É como se houvesse aqui dois "modelos" importante, justapostos e alternados, para o inter-relacionamento humano. O primeiro é o da sociedade como um sistema estruturado, diferenciado e frequentemente hierárquico de posições político-jurídico-econômicas. O segundo é o da sociedade como uma communitas, comunidade ou mesmo comunhão, desestruturada ou estruturada de forma rudimentar, de indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos dignatários rituais.

Turner usava a linguagem da antropologia e localizou a questão da communistas dentro da problemática antropológica costumeira, preocupada com as diferenças entre as formas pelas quais os agregados humanos ("sociedades", "culturas") asseguravam sua durabilidade e sua auto-reprodução contínua. Mas os dois modelos descritos por ele também podem ser interpretados como representações de modos complementares de coexistência humana que se misturam em diversas proporções em todo e qualquer grupo humano, e não como diferentes tipos de sociedades.

Nenhuma variação do convívio humano é plenamente estruturada, nenhuma diferenciação interna é totalmente abrangente, inclusiva e livre de ambivalência, nenhuma hierarquia é total e congelada. A lógica das categorias imperfeitas preenche a diversificação endêmica e a desordem da interações humanas. Cada tentativa de completar a estruturação deixa grande número de "fios soltos" e significados contenciosos. Cada uma delas produz espaços em brancos, áreas indefinidas, ambiguidades e territórios "de ninguém" que carecem de levantamentos e mapas oficiais. Todas essas sobras do esforço de trazer a ordem constituem o domínio da espontaneidade, da experimentação e da autoconstituição humanas. A communitas é, para o bem ou para o mal, o revestimento de todo conjunto de societas - e na sua ausência (se isso fosse concebível) esse conjunto se dispersaria: as societas se desintegrariam em suas suturas. São as societas com sua rotina e a communitas com sua anarquia que, em conjunto, numa cooperação relutante e dominada pelo conflito, fazem a diferença entre a ordem e o caos.

A tarefa que a institucionalização, com seus braços coercitivos, realizou de modo deficiente ou deixou de cumprir ficou para ser consertada ou completada pela inventividade espontânea dos seres humanos. Tendo-lhe sido negado o conforto da rotina, a criatividade (como apontou Bakunin) tem apenas duas faculdades humanas em que se basear: a habilidade de pensar a tendência (e coragem) de se rebelar. O exercício de cada uma das duas é repleto de riscos e, ao contrário da rotina arraigada e protegida de modo institucional, não se pode fazer muito para minimizar esses riscos, muito menos para eliminá-los. A communitas (que não deve ser confundida com as contra-sociedades que reclamam o nome de "comunidade", mas que se ocupam em emular os meios e recursos da societas) habita a terra da incerteza - e não sobreviveria em nenhum outro país.

A sobrevivência e o bem-estar da communitas (e também, indiretamente, da societas) dependem da imaginações, inventividade e coragem humanas de quebrar a rotina e tentar caminhos não-experimentados. Dependem, em outras palavras, da capacidade humana de viver com riscos e aceitar a responsabilidade pelas consequências. São essas capacidades que constituem os esteios da "economia moral" - cuidado e auxílio mútuos, urdir o tecido dos compromissos humanos, estreitar e manter vínculos inter-humanos pela sorte e bem estar de todos - indispensável para tapar os buracos escavados e conter os fluxo liberados pelo empreendimento, eternamente inconcluso, da estruturação.

Zygmunt Bauman
1925 - 2017