26.5.20

Cultura consumista

1925 - 2017

Teorizar sobre a internet como uma nova e aperfeiçoada forma de política, dizer que surfar na rede mundial é um modo novo e mais eficaz de engajamento político e que a conexão acelerada à internet e a velocidade cada vez maior desse surfar são avanços democráticos, parece suspeitosamente com muitos disfarces das práticas de vida cada vez mais comuns e despolitizadora da classe instruída, e acima de tudo em sua aguçada preocupação com a dispensa honrosa da "política real".

Contra esse coro de louvor, o veredicto direto de Jodi Dean é ainda mais retumbante: as tecnologias de comunicação atuais são "profundamente despolitizantes". Hoje em dia,

a comunicação funciona de maneira fetichista: como negação de uma desautorização ou castração política mais fundamental. O fetiche tecnológico é "político", possibilitando-nos continuar o resto de nossas vidas aliviados de culpa porque poderíamos não estar fazendo nossa parte, e seguros na crença de que somos, afinal de contas, cidadãos informados e engajados. Não precisamos assumir responsabilidades políticas porque a tecnologia faz isso por nós. Ela nos permite pensar que tudo de que precisamos é universalizar determinada tecnologia, e então teremos uma ordem social democrática ou pacificada.

A realidade parece estar em total oposição e seu retrato vivo e alegre pintado pelos "fetichistas da comunicação". O poderosos fluxo de informação não é afluente do rio da democracia, mas um insaciável canal de ingestão que intercepta seus conteúdos e os canaliza para um conjunto de lagos artificiais magnificamente grandes, porém malcheirosos e estagnados. Quanto mais poderoso é o fluxo, maior a ameaça de que o leito do rio venha a secar. Os servidores do mundo armazenam informações para que a nova cultural líquido-moderna possa substituir o aprendizado pelo esquecimento como maior força motriz das atividades de vida dos consumidores. Os servidores engolem e armazenam as marcas de dissensão e protesto para que a política líquido-moderna possa ir em frente sem sofrer influências nem interrupções - substituindo o confronto e a argumentação por frases descontextualizados e oportunidades para fotos.

As correntes que se afastam do rio não são revertidas e lavadas ao leito principal com facilidade: Bush e Blair puderam ir à guerra sob falsos pretextos, ainda que não faltassem sites denunciando o blefe deles. De maneira apropriada, os apresentadores preferem dar as notícias sobre a situação política de pé, como se tivessem sido apanhados no meio de algo totalmente diferente ou tendo parado por um momento antes de seguir para algum outro lugar. Sentar-se à uma bancada sugeriria que a notícia tem uma importância mais duradoura do que o pretendido, é uma consequências mais profunda do que os consumidores situados na outra extremidade do canal de comunicação de massa, cada qual ocupado com seu próprio negócio, seriam supostamente capazes de aguentar.

No que se refere à "política real", quando a discordância viaja em direção a armazéns eletrônicos, ela é esterilizada, neutralizar é tornada irrelevante. Aqueles que remexem a água dos lagos de armazenamento podem se congratular por sua inspiração e vivacidade, comprovando sua boa forma, mas os que estão nos corredores do verdadeiro poder dificilmente serão forcados a prestar atenção. Serão apenas gratos à tecnologia de comunicação de última geração pelo trabalho que realiza ao desviar problemas potenciais e desmontar as barricadas dirigidas em seu caminho antes que os construtores tenham tempo de levanta-las, é muito menos reunido as pessoas necessárias para defendê-las.

A política real e a política virtual correm em direções opostas, e a distância entre ambas cresce na proporção em que a auto-suficiência de cada uma se beneficia da ausência da companhia da outra. A era dos simulacros de Jean Baudrillard não eliminou a diferença entre a própria coisa é seu reflexo, entre o real e as realidades virtuais. Apenas cavou um precipício entre ambos - fácil de ser ultrapassado pelos internautas, mas cada vez mais difícil de ser transposto pelos cidadãos atuais, e mais ainda pelos aspirantes.

Como Christopher Lasch comentou amargamente poucos antes de os PCs e telefones celulares começarem a colonizar os mundos privados e íntimos dos consumidores, as pessoas que "vivem em cidades e subúrbios em que vizinhanças inteiras foram substituídas por shopping centers... não tendem a reinventar comunidades só porque o Estado se mostrou um substituto tão insatisfatório". Esse veredicto ainda se sustenta, mesmo depois de a colonização se espalhar até os rincões mais longínquos do planeta na velocidade de um incêndio florestal.

Zygmunt Bauman
Trad.: Carlos A.