1.9.20

Carolinhas

Cartoon de Adão I.

Where is your god?
When you suffer inside the four
Walls of this absurd and bitter
Existence and on this ground
That becomes a hell day by day

Thy Antichrist | Where is your god?

Era uma hora. O ônibus estacionado sairia a uma e meia. Não havia muita gente no terminal. O jeito era formar a fila. Em tempos de pandemia é melhor sentar estrategicamente para não ser contaminado. 

Um velhinho sem máscara, que pelo visto encontrou a vacina para o vírus, se achegou atrás de mim e puxou conversa com uma mulher que trocava de sapato num banco de madeira. O sapato não combinava com a roupa da mulher e nem com a mulher que estava carregada de sacolas de plástico. O velhinho dizia oi para todo mundo que passava por ali. Alguns com pressa não deram atenção. Toda cidade do interior deve ter o seu louquinho de estimação.

Uma senhora também sem máscara o reconheceu, parou para cumprimentar e desandou a tagarelar. Falava mais que a mulher da cobra. O assunto circulou entre o tempo que tinha melhorado graças a deus, o vizinho alcoólatra, Jesus, filho de deus, vai lhe mostrar o caminho, um parente crakudo que tinha morrido em paz com deus, o marido que não largava a vida do boteco, mas com fé no pai ele iria superar, um primo distante viciado em cocaína e deus todo poderoso que o curaria dessa desgraça. Uma cadela sarnenta parou no meio deles. Lambeu a ferida, coçou a orelha e saiu. A fofoquinha foi parar na pandemia: deus todo poderoso há de resolver, salivava de um jeito pegajoso a senhora crédula, deus todo poderoso vai dar um jeito nesse vírus, cuspiu o velhinho crente, porque deus todo poderoso não nos abandona. Basta ter fé. Amém, disse a crente. 

Curioso, no interior a população não diz tchau ou até breve, mas vai com deus e amém. Convenhamos que na capital linda e amorosa também não é muito diferente. O processo de homogeneização sócio-cultural é único por esses lados. Bitolação sem fronteiras.

O velhinho crédulo ficou sozinho e parecia ter ficado triste. A fila tinha crescido, a maioria das pessoas olhando o celular. Um pneu estourou, chamando a atenção dos distraídos digitais. Uma garotinha se assustou e sua mãe engoliu um Ave, Maria. Burburinho. Todos os olhos voltaram para o estranho fenômeno. O motorista desceu, chutou o pneu, é estourou, disse para os outros motoristas e recolheu o ônibus para a garagem. A aglomeração se desfez. O velhinho crédulo, que tinha espirrado um cruz credo, olhava para o seu celular. Me parecia que ele não sabia digitar. Sobrou para mim: o velhinho crédulo deu dois passos e veio pedir ajuda. Não conseguia entender o que estava escrito. Toquei em seu ombro, arriscando a me contaminar, e disse, deus não é todo poderoso, pede auxílio a ele. A porta do ônibus abriu.