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Não foi uma contribuição europeia que promoveu o movimento trabalhista americano, bem pelo contrário. Mas, quero dizer, essas eram simplesmente reações naturais: não se precisava ter nenhum preparo para entender essas coisas, não era preciso ter lido Marx, nem nada assim. É só que é degradante ter de seguir ordens e ver-se preso a um lugar onde se trabalha como escravo durante doze horas e então ir para um dormitório onde vigiam seu comportamento moral e assim por diante – que é como a coisa era. As pessoas simplesmente encaravam isso como algo degradante.
Era a mesma coisa com os artesãos, pessoas que trabalhavam por conta própria e então estavam sendo forçadas a trabalhar nas fábricas – elas queriam poder dirigir suas próprias vidas, isto é, sapateiros contratavam pessoas a fim de ler para eles – e isso não significava ler Stephen King, ou algo do gênero, significava ler para valer. Essas eram pessoas que tinham bibliotecas, e elas queriam viver suas vidas, queriam controlar o próprio trabalho, mas estavam sendo forçadas a trabalhar em fábricas de sapatos em lugares como Lowell, onde sequer eram tratados como animais, mas como máquinas. E isso era degradante e humilhante – e elas lutaram contra isso. E, aliás, estavam lutando contra esse sistema de coisas não tanto porque ele reduzisse seu nível econômico, o que não acontecia (na verdade, provavelmente o estava elevando) – era porque ele lhes estava tirando o poder das mãos e subordinando-as a outras pessoas e transformando-as em meras ferramentas de produção. E isso elas não queriam.
Na verdade, se vocês quiserem ler algo realmente interessante, um livro que eu sugeriria é o primeiro que foi escrito sobre a história do trabalhismo – o primeiro mesmo, eu acho. Saiu em 1924 e acaba de ser reeditado em Chicago: chama-se The Industrial Worker, de Norman Ware, e consta principalmente de excertos da imprensa trabalhista independente dos Estados unidos de meados do século XIX. Vejam, havia uma grande imprensa trabalhista independente nos Estados Unidos nessa época – era mais ou menos na escala da imprensa capitalista, na verdade – e era dirigida pelas chamadas “operárias” ou por artesãos. E é extremamente interessante de se ler.
Em pleno século XIX, os trabalhadores nos Estados Unidos estavam lutando contra a imposição do que descreviam como “degradação”, “opressão”, “escravidão do salário”, ‘privar-nos de nossos direitos elementares”, tudo que hoje chamamos de capitalismo moderno (que é na verdade o capitalismo de Estado) foi combatido por eles durante um século inteiro – e muito encarniçadamente; essa foi uma luta extremamente dura. E estavam lutando por “republicanismo trabalhista” – vocês sabem: “Vamos voltar ao tempo em que éramos gente livre.” “Trabalho” significa apenas “gente”, afinal de contas.
E, de fato, eles estavam lutando também contra a imposição do sistema de educação pública em massa – e com muita razão, porque entendiam exatamente o que isso significava: uma técnica para arrancar à força a independência da cabeça dos agricultores e transformá-los em operários fabris dóceis e obedientes. Foi por isso que, no final de contas, a educação pública foi instituída nos Estados Unidos, para início de conversa: para atender às necessidades da indústria emergente. Vejam, parte do processo de tentar desenvolver uma força de trabalho degradada e obediente era tornar os operários burros e passivos, e a educação em massa era um dos meios pelos quais isso era alcançado. E, é claro, havia também um esforço muito mais amplo para destruir a cultura intelectual independente da classe operária, que havia se desenvolvido, e que ia do total uso da força até técnicas mais sutis, como propaganda e campanhas de relações públicas.
E esses esforços na verdade se conservavam até os dias de hoje. Então, sindicatos trabalhistas foram praticamente liquidados nos Estados Unidos, em parte por uma enorme quantidade de propaganda empresarial, que ia do cinema e quase tudo, e passando por vários outros meios também. Mas o processo todo levou muito tempo – tenho idade suficiente para me lembrar de como era a cultura da classe operária nos Estados Unidos: ainda existia um alto nível dela quando eu estava crescendo, no final dos anos 1930. Levou muito tempo para arrancá-la da cabeça dos operários e transformá-los em ferramentas passivas; levou muito tempo para fazer as pessoas aceitarem que esse tipo de exploração é a única alternativa, e então era melhor simplesmente esquecerem sobre seus direitos e dizerem; “Está bem, sou um degradado.”
Então, a primeira coisa que tem de acontecer, eu acho, é termos de recuperar parte dessa antiga compreensão. Isto é, tudo começa com mudanças culturais. Temos que desmantelar esse negócio todo culturalmente: temos que mudar a mente das pessoas, seu espírito e ajuda-las a recuperar o que era de entendimento comum em um período mais civilizado, como um século atrás nos galpões das fábricas de Lowell. Se esse tipo de entendimento podia ser natural entre uma grande parte da população em geral no século XIX, pode voltar a ser natural agora. E é algo em que temos realmente de trabalhar hoje.
Noam Chomsky
Tradução: Eduardo F. Alves