16.11.24

A razão gulosa


Na falta de certezas sobre o além e suas promessas de felicidade - os édens alimentares e nutritivos, sexuais e bucólicos, líquidos e sensuais - os cristãos, e mesmo os que não o eram, frequentemente usaram e abusaram da pátria sublime, da alma ardente do vinho, da quinta-essência ou da água de fogo, também dita água de ouro ou permanente. De modo que, enquanto esperavam a vida eterna e a felicidade dos anjos, os homens pediram muitas vezes à aguardente os transportes que a teologia, se não os roteiros da Igreja, não lhes permitiam. Tem-se a água lustral que se pode...

No corpo do alcoólatra habituado a substâncias temperadas estão instaladas e sedimentadas as partes voláteis dos aromas. Imputrescíveis, elas marcam a carne, fazem dela matéria explosiva. Beber álcool é transformar-se em álcool e, portanto, arriscar-se a explodir se as condições se apresentarem. A leitura sumária do real, a teoria dos fluidos e a dos humores hipocráticos provocam ilusões substancialistas e animistas que os higienistas, dietistas, médicos e cientistas, agindo de par com as autoridades políticas, mais ou menos voluntariamente exploram um terreno ideológico.

O corpo é uma alambique, uma máquina que destila e transforma as moléculas alcoólicas em explosivos potenciais. A carne é um reservatório desses perigos; o fogo, uma danação consubstancial com o pecado dos que preferem a aguardente, e seus efeitos imanentes, à água benta, cuja eficiência muitas vezes demora a aparecer. No mal-estar que se expressa no amante de álcoois destilados, aflora a dor de ser, o sofrimento existencial que consolos excessivamente celestiais não consegue vencer. A sanção médica é também teológica: o fogo aguarda os que pecaram bebendo, porque liberaram suas energias animais, solicitaram perigosamente de seus espíritos vitais, renderem-se à sua parte dionisíaca.

A aguardente é bebida de vitalidade, de substâncias miríficas, pelos efeitos rápidos e seguros que produz. Eis, aliás, as razões por que é mais suspeita que as demais bebidas alcóolicas: ela é veículo diligente, presto e lesto que conduz a esferas onde dançam o ar as almas. O espírito etílico é semelhante ao éter. Derramado numa mesa, molhado na trama de um pano, espalhado no dorso da mão, ele se consome sem chama nem calor, desaparece na transparência; absorvido pelo ar, a este misturado, ascende às regiões celestiais, onde certamente encontrará as destilações dos destilados, os espíritos do espírito já quinta-essenciado. Sempre mágico, o evaporado é a prova de um céu, por supor um espaço que se alimente dos vapores alcoólicos. Nos limbos do céu mora o restante da parte dos anjos.