26.2.18

por que não?


Reclaim the Streets Global Day of Action | 1998

[...]

Sob a inspiração de problemáticos rótulos geracionais, os "retratos da juventude" construídos nos espaços midiáticos (com apoio, em regra, de pesquisas patrocinadas pelo mercado e/ou por universidades, além do suporte recorrente de depoimentos de uma ampla rede de especialistas na psique, na fisiologia e nas tendências de consumo juvenil) tendem a homogeneizar gostos, experiências, problemas e expectativas de um grupo variado e desigual de pessoas da mesma faixa etária, negligenciando a diversidade de circunstâncias individuais e estratificações sociais que permeiam a vida destas populações. O arsenal de discursos e representações enfatiza, em regra, o "hedonismo", o "individualismo", o "consumismo" e "apatia política" dos membros flutuantes das tribos juvenis, num cenário de relativa indeterminação estrutural, amplificada saturação midiática e múltiplas possibilidades de identificação.

[...]

Invasões, ocupações, sabotagens, marchas, bicicletadas, contrapropagandas dramatizam um difuso mal-estar existencial e social diante do consumismo incentivado pela mídia, da destruição acelerada do meio-ambiente pela ganância empresarial, do processo de privatização e conversão em mercadoria de ideias, identidades, água, sementes e, até mesmo, material genético humano.

[...]

Organizado em meados dos anos 90 na Inglaterra, o Reclaim the Streets logo se firmou como importante foco de convergência de ambientalistas, militantes anticorporações, anarquistas e artistas preocupados com os efeitos ruinosos do capitalismo na esfera local e global. Seu entusiasmo crítico e poder aglutinador foram fundamentais para fomentar a Ação Global dos Povos - uma rede permanente de mobilização e comunicação entre ativistas de todo o mundo (sem escritórios, funcionários, hierarquia ou ideologia estritamente definida), notabilizada pela organização dos Dias de Ação Global (manifestações de rua histriônicas, estridentes e, por vezes, contundentes que visam condensar, tumultuar ou mesmo impedir os encontros de líderes dos países mais ricos do mundo e as reuniões promovidas pelas instituições-símbolo do capitalismo mundial).

De início, o Reclaim the Streets concentrava suas energias contestadoras no repúdio aos projetos de expansão de rodovias na Inglaterra; rapidamente, porém, o foco dos protestos foi estendido para abarcar toda a "cultura do automóvel", numa abordagem em que os carros figuram como "um símbolo das divisões sociais, espaço privado versus espaço público, isolamento da natureza/do mundo exterior (o casulo/a bolha de aço) e da erosão da comunidade" (Jordan 1997).

Centro catalisador do engajamentos dos membros do RTS e de outros grupos de ação direta e organizações de defesa do espaço público como Critical Mass, Carbusters, Right of Way, Time's UP! e Transportation Alternatives, a crítica do papel do automóvel na criação e manutenção de padrões de organização e interação social possui um pedigree intelectual respeitável. Embora o antepositivo auto na palavra automóvel remetesse, originariamente, apenas à capacidade do moderno meio de transporte de mover-se sem a necessidade de uma força exterior, dispensando qualquer tipo de tração animal, não tardou muito para que fosse disseminada toda uma mitologia emancipatória em torno da combinação de autonomia e mobilidade propiciada pelo veículo e da sua correlata capacidade de expressar ou turbinar a individualidade e a independência dos motoristas. Envolvido por uma extensa rede de conotações sociais e culturais cobiçáveis, o automóvel se tornou, simultaneamente, um dos alvos prediletos da hostilidade de pensadores de esquerda - em especial, daqueles radicados na França pós-guerra. A circulação dos automóveis já havia gerado desassossego entre intelectuais de um período anterior, mas foi somente dentro das condições incrementadas pelo boom do consumismo a partir de meados da década de 50 que o uso e a propaganda de carros particulares se tornaram uma visão ubíqua no cotidiano francês e uma fonte de interesse e preocupação assídua de escritores, cineastas, filósofos, sociólogos e críticos culturais (Inglis 2004). A aquisição dos automóveis (incentivada com afinco pelo governo) foi reiteradamente tomada, desde então, como uma manifestação tangível de determinadas dinâmicas (ou patologias) sociais, como a atomização e a desumanização no cotidiano das metrópoles, o consumo conspícuo e a competição pelo status e os comportamentos agressivos incitados por uma sociedade altamente competitiva e individualista.

[...]

Não se trata somente de protestar contra aquilo que dificulta ou impede as apropriações genuinamente públicas e imaginativas das ruas e construções metropolitanas - a intenção é torná-las um palco temporário para ensaios abertos dos outros modelos de expressão, convivência e participação, fora dos parâmetros capitalistas vigentes. Fiéis à plataforma vanguardista de abolição das fronteiras entre arte e vida e de introdução da criatividade, da imaginação, do jogo e do prazer no projeto revolucionário, os protestivais itinerantes do RTS ambicionam tornar as demandas utópicas momentaneamente concretas, palpáveis. Em oposição ao livre-mercado, brota das ruas, parques e praças reconquistadas a prefiguração de uma sociedade livre e solidária, baseada na expansão, revitalização e recriação do espaço público como lugar de interação (não mediada pelo consumo de mercadorias) e camaradagem entre cidadãos conscientes e participativos.

[...]

As mobilizações anti-capitalistas atuais reivindicam outro tipo de globalização - sinônimo de justiça e igualdade social, efetiva cooperação entre os povos e respeito às culturas. Em busca da (difícil) harmonia entre poesia e pragmatismo, ensaiam a utopia de um mundo sem autoritarismo e hierarquias, enquanto demandam o perdão da dívida externa dos países pobres e a democratização dos processos decisórios das instituições financeiras internacionais ou denunciam as consequências da imposição generalizada das severas reformas econômicas neoliberais e as normas de trabalhos antiéticas adotadas, em países do Terceiro Mundo, por corporações transnacionais de indústrias e serviços.

João F. Filho e Ana J. Cabral | A resistência juvenil em tempos espetaculares: ecos e ensaios da contracultura no século XXI