20.7.18

somos contemporâneos de nossa escravidão


... a corrosão do caráter - esse fundo de violência não superado no Brasil, que persiste quando se defende o direito à violência direta em relação aos pobres - nunca permitiu que a profecia de fé racionalizante de Sérgio Buarque se realizasse plenamente aqui. Senão, como explicar a recente e absolutamente escandalosa anulação, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, do julgamento que condenava os policiais assassinos de 111 presos - quase todos negros - no massacre de 1992 no Carandiru? Ou como explicar, então, que os assassinatos cometidos pela polícia paulista de 493 jovens - também negros em sua maioria - nos dias seguintes à revolta do PCC, em maio de 2006, jamais tenham sido esclarecidos, julgados ou punidos? Ou como explicar, ainda, que parte da elite paulistana faça questão de tirar selfies com essa mesma polícia, reafirmando, dessa forma, um vínculo de proteção de classe - vínculo quase particular junto a uma polícia que se privatiza -, mas também legitimando todas as ações de extermínio da PM contra jovens brasileiros pobres e negros? Como explicar o acomodamento geral frente aos nove assassinatos por dia cometidos atualmente pelas polícias do Brasil?


[...]

Oitenta anos de regimes antissociais, antidemocráticos, autoritários ou ditatoriais brasileiros, incluindo-se aí a famigerada República Velha, o Estado Novo getulista e a violenta ditadura civil-militar de 1964-1985. Esse conjunto de obras de elite deformou completa e terrivelmente, em termos humanos, sociais e espirituais, o século XX brasileiro. Apesar do esforço generoso, produtivo e esteticamente brilhante de nosso modernismo artístico e intelectual - uma corrente do espírito que forçou e alterou muitos aspectos do Brasil moderno arcaico -, o que significam estes quase oitenta anos em cento e vinte de regimes autoritários e de altíssima concentração de poder em pleno século XX brasileiro?

Com os olhos livres, ou com algum ajuste de lentes, é possível ver nessa dificuldade democrática o reflexo da elite brasileira, que continuamente tenta limitar o acesso e a integração das massas no espaço da riqueza nacional. Tão indecentemente orientada para o alto, ela é uma verdadeira repetição da estrutura concentracionária, da cisão absoluta entre o mundo do trabalho e o mundo do direito própria de nosso século XIX escravista. Nossos surtos autoritários de poder concentrado, agora revestidos com a máscara neoliberal, não estariam apena repondo a ordem mais séria e constante, a ordem ocidental capitalista escravista periférica, cuja fronteira terrível atravessou a nossa própria nação como uma verdade de força irrecusável? E como ficam os sujeitos não modernos brasileiros, que, apesar de negociarem a produção e a riqueza nacional no mercado mundial e de sempre participarem das benesses da internacionalização do capital, são em geral incapazes de produzir, de modo constante e contínuo ao longo do processo histórico brasileiro, integração social suficiente e adequada aos níveis contemporâneos de desenvolvimento?

O que sabemos bem do Brasil é que o país produz poder, formas sociais e muita riqueza - e o faz geralmente sobre os escombros da reprodução histórica da miséria, da pobreza e da exclusão. Para tanto, a nação militariza fortemente a sua vida pública por meio da transformação de uma ação social, que seria necessária, em uma exclusão tolerada e em caso de polícia - o que produz o verdadeiro veneno subjetivamente político que embala nossos conservadores extremamente medíocres.

[...]

Nossa escravidão nacional, desenvolvida sobretudo durante a mais plena modernidade, marcaria a formação do caráter de muitos como uma neurose principal instalada, gozo perverso, que continuaria a produzir formas brasileiras de violência 

A nação consciente, desejada e produtora de lutas democratizantes, realizada em formas públicas possíveis de maior ou menor integração democrática, teria sempre que conviver com o sujeito originário dos atos de violência escravocrata, de desrespeito absoluto pelo corpo e pelo estatuto legal do outro, de máxima exploração e de felicidade de disposição sádica dos senhores, do gesto de força garantido sobre a vida dos trabalhadores, estrangeiros africanos, alucinadamente forçados para os limites da humanidade dita brasileira. Uma estruturação sádica subjetiva forte, preguiçosa quanto ao valor do próprio trabalho, que atravessa tempos históricos heterogêneos, que resiste - com a simplicidade com que resistem os desejos infantis no modelo psicanalítico dos sonhos - e que insiste em uma nação e em uma cultura que, devendo avançar como progresso, não deve superar a sua violência originária como ordem.

A escravidão é o sonho limite de nossos autoritários, tão constantemente presentes na história brasileira, e o pesadelo real de todos os que sentem e combatem. Ela é a ordem prévia, desejada e imposta na articulação do sadismo e do classismo entre nós, nossa infeliz origem imanente, muito anterior a toda vida pública democrática e includente.

[...]

Não falar, não imaginar, não escrever sobre a escravidão e a estrutura social nacional estabeleceram as condições arcaicas de nosso anti-intelectualismo profundo, lamentável e generalizado.

Tales Ab'Sáber
Agosto 2017