12.9.18

babi yar


"Vamos embora, entreguem todos os diplomas de distinção", disse o avô. "Todos os retratos, todos os livros soviéticos! Marusya, mãos à obra se queres vive".

Os meus diplomas escolares tinham o retrato de Lenine no lado esquerdo e o de Estaline no lado direito. O avô, que até ali nunca se interessara por livros, pegou ele próprio em braçados inteiros que deitou ao fogão. A princípio, minha mãe resistiu, mas, por fim, resignou-se.

Estava frio, e os livros aqueceram o fogão que era uma beleza.  Lembro-me de que só se salvaram as obras completas de Puchkine. O avô não tinha a certeza acerca dele, pois Puchkine, embora um moskal, um russo, vivera há muito tempo, e nem bolcheviques nem alemães o tinham condenado.

Os livros produziram um montão enorme de cisco e a chaminé entupiu. A minha mãe pegou numa pá, limpou o fogão e retirou as cinzas. Trabalhava concentradamente, o rosto inexpressivo. Eu então disse:

- Não fique desgostosa. Lá virá o dia em que teremos outa vez montes de livros.
- Os néscios nunca os pouparam - disse ela. - Nunca.

A biblioteca de Alexandria foi queimada, a Inquisição teve as suas fogueiras, os livros de Radistchiev foram queimados, Hitler queimou livros nas ruas. Se escapares com vida, lembra-te disto: quando se queimam livros é porque as coisas vão mal, é porque a violência, a ignorância e o medo reinam por toda a parte. E que acontece agora? Quando um bando de degenerados queima livros nas ruas é horrível, sim, mas não o pior que pode acontecer. Mas quando as pessoas começam a queimá-los na sua própria casa, trémulas de pavor...

Jamais esqueci aquelas palavras. É possível que minha mãe se exprimisse de forma ligeiramente diferente, mas a substância reproduzi-a eu com rigor - a biblioteca de Alexandria e a Inquisição, acerca de ambas as quais tive, assim, um ensinamento concreto, pois surgira uma ponte que as ligava discretamente com o nosso fogão.

Na escola instalou-se uma unidade do exército que, durante várias horas, se entreteve a atirar carteiras, equipamento de laboratório, globos e livros pelas janelas. Dirigindo-se à nossa biblioteca de bairro, atiraram com o recheio para o jardim. Viam-se livros caídos nas ruas, espezinhados pelos transeuntes como se fossem lixo.

Quando a unidade foi transferida e deixou a escola devoluta, fui até lá deitar uma espreitadela. Todo o rés-do-chão fora convertido num estábulo. Os meus pés afundaram numa camada de palha e estrume que cobria o soalho da nossa sala de aulas; nas paredes tinham espetado argolas de ferro para prender os cavalos. Nas salas dos outros andares havia bancadas cheias de palha. No chão, por toda a parte, ligaduras de mistura com fotografias de mulheres nuas tiradas de revistas. No pátio tinham aberto uma longa vala com paus adaptados por cima. Era a sua latrina a céu aberto, visível aos olhos de todos.

O monte de livros deitados fora sofrera já grandes danos causados pela chuva. Os da camada superior estavam empapados em água, as páginas coladas. Escalei o monte e comecei a escavá-lo. Os livros que se encontravam por baixo estavam úmidos, viscosos e quentes: apodrecidos.

Sentei-me sobre o monturo, encolhidos por causa do vento, e pus-me a remexê-los. Descobri Bug-Jargal, de Hugo, e perdi-me na leitura. Não me conseguia arrancar dali e, quando escureceu, levei o volume comigo.

No dia seguinte, peguei numa saca e comecei a juntar livros. Escolhi os menos danificados, os que tinham a capa mais sólida. acartei-os para casa e amontei-os no telheiro, no canto mais afastado, por detrás do monte de lenha. Imaginei então uma história que impingi ao avô: "Não temos muita lenha; quando os livros estiverem secos podemos utilizá-los como combustível". O avô reflectiu; por um lado, eram livros, de facto, mas, por outro, não nos pertenciam - havíamo-nos limitado a aproveitá-los para servirem de lenha. "Está bem, és um rapaz esperto", disse-me ele à guisa de louvor.

Havia-se esgotado o nosso petróleo, e as lâmpadas elétricas pendiam sem vida do tecto. Cortei então alguns pedaços de madeira, dando-lhes a forma de velas, fixei-os na ponta bifurcada de um pau e acendi um fósforo. O resultado não era mau de todo. Ardiam bem enquanto se lia, necessitando apenas de um ou outro ajustamento com a mão. Quando uma vela se acabava, arrancava-se e acendia-se outra. Produziam um cheiro agradável e davam, até, certo calor. Eu arranjara um lugar para mim em cima do fogão, que se encontrava quase frio, pois a minha avó decidira economizar lenha. O gato Tito, deitava-se ao meu lado e aquecíamos mutuamente enquanto eu lia. E quanto livros li nessa fase! Mas, mal acaba um livro, o avô levava-o para servir de combustível...

Lia até altas horas enquanto durou o molho de velas. A minha mãe saía do quarto dando estalidos com os ossos dos dedos e deitava-me um olhar estranho.

- Porque não dorme? - perguntava eu, irritado.
E ela respondia:
- Está lá fora um carro a buzinar e não consigo dormir.

Anatoly Kuznetsov | 1966
Trad.: Jorge Rosa