13.10.18

ensino superior, para quê?

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Muitos dos problemas do ensino superior podem estar ligados ao baixo financiamento, à dominação das universidades por mecanismos de mercado, à mudança da educação pública em privada, à intromissão do Estado de segurança nacional, bem como à falta de autonomia do corpo docente.

Em uma época em que a cultura de mercado coloniza agressivamente o cotidiano e em que as formas sociais, cada vez mais, perdem sua forma ou desaparecem por completo, o ensino superior parece representar uma reconfortante permanência, como um marco de lentas mudanças, em meio a uma paisagem de rápida dissolução das esferas públicas. Mas o ensino superior nos EUA está perdendo cada vez mais o seu caráter público e seu compromisso com a vida pública, uma vez que se alinha com poderes e valores corporativos militares.


Líderes corporativos estão contratados como reitores de universidades; muitos docentes de carreira são substituídos por professores contratados por tempo determinado com a assinatura de contratos de trabalho; os alunos são tratados como clientes; e a aprendizagem é cada vez mais definida em termos instrumentais, enquanto o conhecimento crítico é relegado para a lixeira de uma arte liberal empobrecida e subfinanciada.

Obrigar a universidade a servir como aprendiz de potência corporativa, reduzindo simultaneamente questões de autonomia universitária à extensão da lógica e dos interesses corporativos, fragiliza substancialmente o papel do ensino superior como esfera pública democrática: dos acadêmicos como intelectuais engajados e dos estudantes como cidadãos críticos. [...] Isso se torna cada vez mais irrelevantes em uma universidade orientada pelo mercado e militarizada.

Se a comercialização e a militarização da universidade continuar ininterruptamente, o ensino superior não será mais uma das poucas instituições que fomentam a investigação crítica, o debate público, atos de justiça e deliberação comum.

Educar os jovens no espírito de uma democracia crítica proporcionando-lhes conhecimento, a paixão, as capacidades cívicas e a responsabilidade social necessários para enfrentar os problemas disciplinares rígidas, o culto da especialização ou de conhecimentos altamente especializados alheios à vida pública, e ideologias antidemocráticas e anti-intelectuais se intensificam juntamente com o surgimento contemporâneo de diferentes fundamentalismos, incluindo um mercado baseado na racionalidade neoliberal, que exibe um profundo desprezo, se não uma total rejeição, pela democracia e pelo ensino público, assim como pela concessão de bolsas de estudos. Em tais circunstâncias, não é de estranhar que o ensino superior em várias partes do mundo seja refém de forças políticas e econômicas que desejam converter as instituições educativas em estabelecimentos empresariais, definidos por identidade, missão e fins lucrativos.

É cada vez mais evidente que a universidade na América tornou-se uma instituição social que não conseguiu resolver as desigualdades na sociedade, mas contribui para uma crescente divisão entre as classes sociais.

Não devemos permitir que a educação seja modelada de acordo com o mundo empresarial nem nos acomodar enquanto o poder corporativo mina e influencia a semiautonomia do ensino superior, exercendo controle sobre seu corpo docente, seus currículos e seus alunos.

O ensino superior tem a responsabilidade não só da busca da verdade, independentemente para onde ela pode levar, mas também de educar os estudantes a desempenhar uma autoridade política e moralmente responsável.

Confundir democracia com relações de mercado, esvazia o legado do ensino superior, cujas raízes mais profundas são morais e não comerciais.

Ao mesmo tempo em que a livre circulação de ideias é cada vez mais substituída por ideias geridas pela mídia dominante, elas se tornam banais, se não reacionárias. Intelectuais que se dedicam à dissidência são vistos ou desprezados como irrelevantes, extremistas ou não patriotas; intelectuais dedicados às relações púbicas agora dominam os meios de comunicação, dispostos a tudo para internalizar cooptações e colher os frutos da divulgação de insultos aos seus alegados adversários. O que se perde nessas práticas antidemocráticas são as condições econômicas, políticas, educacionais e sociais que proporcionam uma cultura favorável ao florescimento da democracia.

A democracia coloca exigências cívicas sobre os seus cidadãos, e tais exigências apontam para a necessidade de uma educação de base ampla, crítica e que dê sustentação a um poder do cidadão com significado, a uma participação autônoma e uma liderança democrática. Somente mediante tal cultura educacional crítica e sustentável é que os estudantes podem aprender como tornar-se agentes individuais e sociais, e não apenas espectadores descomprometidos.

Os cidadãos já não são mais vistos como agentes envolvidos ativamente no exercício do poder e como contribuintes para a orientação da política. Amplamente removidos da política, os cidadãos são transformados em consumidores e soldados ou relegados à poeira dos celeiros da disponibilidade.

A democracia é agora gerida por corporações, por elites que decidem e por fundamentalistas de direita. Os cidadãos são largamente despolitizados, reduzidos à sombra quanto à sua participação na política. Questões de poder e desigualdade, agora dão lugar a espetáculos midiáticos altamente geridos e trabalhados com a lógica corporativa de que o poder não deve ser utilizado para o bem público, mas para os interesses privados.

Esse esvaziamento da democracia não pode acontecer sem a cumplicidade de uma intelectualidade fiel ou um público ignorante.

Recuperar o ensino superior como uma esfera pública democrática, um lugar onde o ensino não seja confundido com treinamento, militarismo ou propaganda, um espaço seguro onde a razão, a compreensão, o diálogo, a crítica e o compromisso estejam disponíveis para todos os professores e alunos.

Os princípios do mercado não devem se tornar a estrutura organizacional. [...] O ensino superior não deve ser administrado como um negócio, nem deve ser simplesmente vendido para os mais altos apostadores corporativos e governamentais.

Deve ser lançada uma campanha contra a visão corporativa do ensino superior como apenas um centro de treinamento para futuros empregados de empresas, uma franquia para gerar lucros, um centro de pesquisa para os militares ou um espaço em que a cultura corporativa e a educação se fundem  a fim de produzir consumidores eruditos.

O convite para "retomar a universidade" é um lembrete de que a luta pelas condições educacionais, que tornam possíveis e eficazes as identidades democráticas, os valores e a política, deve ser travada com urgência, nesse período em que a esfera pública democrática, assim como os bens e os espaços públicos estão sob ataque de inúmeros fundamentalismos que compartilham o denominador comum que é desabilitar uma substantiva noção de ética democrática, agência e política. Mais especificamente, estou conclamando a todos para a construção de estratégias para recuperar a promessa da universidade como um bastião da democracia e para lutar contra essas forças antidemocráticas que trabalham, atualmente, para instrumentalizá-la, mercantilizá-la e militarizá-la.

Além disso, em função dos recentes ataques ao ensino superior por grupos de direita, pela mídia e por grupos de reflexão, é fundamental que tenha lugar uma defesa nova e cheia de espírito da liberdade acadêmica. Tais grupos, cada vez mais, ameaçam a utilização do conhecimento crítico, do debate, do diálogo e da pedagogia na sala de aula, rotulando tais práticas como propaganda, como se o objetivo do ensino devesse ser o de reproduzir os saberes existentes e a opinião pública, em vez de realizar um diálogo crítico sobre eles.

Está em causa aqui, a noção de uma prática de ensino que simplesmente se recusa a servir ao poder do governo, aos interesses nacionais e a visões de mundo oficialmente sancionadas.

A educação deverá expandir a habilidade dos alunos em serem agentes críticos, capazes de governar em vez de simplesmente serem governados e de pensar as possibilidades de um futuro mais democrático. Em vez disso, estamos assistindo a uma perigosa confluência de ensino superior, militarismo e poder corporativo que degrada a prática cotidiana e a cultura do ensino superior.

A atual compartimentalização do ensino superior, a mercantilização do currículo, a crescente ligação entre os militares e as universidades mediante projetos de investigação conjuntos e bolsas de estudos patrocinadas pelo Pentágono, bem como a transformação dos alunos em consumidores, têm prejudicado faculdades e universidades nos seus esforços para proporcionar aos estudantes os conhecimentos e as competências de que necessitam para aprender a governar, como também para desenvolver as capacidades necessárias para a deliberação, a argumentação fundamentada e as obrigações de responsabilidade cívica.

O que ficou claro é que a incursão, na vida da universidade, de valores corporativos da política ideológica de direita, assim como da cultura militar, valores esses profundamente enraizados, prejudica a obrigação que a universidade tem de fornecer aos estudantes uma educação que lhes permita levar a sério a afirmação insistente de John Dewey, de que a democracia tem que renascer em cada geração e a educação é a sua parteira.

O ensino superior está se tornando cada vez mais inacessível para todos, menos para os estudantes financeiramente mais prósperos. Deveria ser gratuito para todos os alunos, simplesmente porque não é um título, mas um direito fundamental para o funcionamento da democracia.

O ensino superior não pode ser controlado pela riqueza.

Como é sabido, as relações de poder nas universidades e nas faculdades, são hoje extremamente pesadas, em grande parte, controladas por administradores e gestores, portanto, tomadas daqueles que realmente fazem o trabalho da universidade, a saber, o corpo docente, funcionários e alunos. O poder tornou-se centralizado, em grande parte, nas mãos de administradores que estão próximos ao negócio, à indústria e à segurança nacional e estadual.

Um corpo docente fraco se traduz em um corpo docente sem direitos ou poder, regido pelo medo e não por uma partilha de responsabilidades e que é suscetível a táticas de barateamento da mão de obra, como o aumento da carga de trabalho, a crescente casualização do trabalho, bem como a supressão da dissidência.

Henry Giroux
2010