28.4.08

[Fragilidade]

[O monstro verde, de Isabel de Sá, 1983]


Não gosto do que acabo de escrever - mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu.

[Clarice Lispector - Água Viva]

São indagações
cuja resposta é o contrário da linguagem.

[Rubens Rodrigues Torres Filho - linguagem]


Fragilidade

Trago em mim todas as indagações mas divagarei pelo mais temível: a sombra. O medo de nos tornarmos sombras e no esquecimento puf!, restar apenas o excesso do pó sobre o sapato, sobre os livros, sobre a mesa, o qual observaríamos a partir do ângulo de insustentável leveza. E é por esse medo que não mais sabemos o que somos (Sombras. Farsantes. Seres humanos) e o que referendamos (Sonhos. Esparsos espaços. Projetos. Reconhecimentos). Inalcançáveis. A divagação de todas as noites grávidas de pensamentos bem próximos à imagem de balões de hélio, por entre os quais, pouco antes do amanhecer, delineamos nossos desejos mais recônditos ao estado de espírito. De corpo, que fala: e se arrasta enfadonho. Seco.

A noite esfriou em Curitiba, e sabemos, ao estarmos empacados neste jogo de viver, criar uma leve certeza de que amanhã será apenas amanhã. Hoje. Agora. No instante de tudo. Os fatos não correspondem mais às ideías, ou seria o seu inverso? Sob o peso de nossos corpos (o filósofo imaginário): quilos e quilos de eureka. Razão pura! Pepita? Quanto valerá? Ou é por quilo? Pensando em tê-la sem jamais vivê-la. . Mas, perante o instante de todas as idéias, que coisa é aquela ali, no canto? Acuada? Uma bolha, que devora o suicídio? A coerência? Que maldita metamorfose é essa que ocorreu conosco? Meta-formose.

Cerebrando o corpo químico,

vamos percebendo, aos poucos, como o espaço de dentro é alucinado. Do ovo. Parede branca. Livros. Quadros. Quadrado : Buraco negro. Racionalidade oposta de cima para baixo. Cara e coroa: cidade capital universidade universo banco. E agora o mal.

Sob todo esse peso, penso logo empíricamente sobre a minha mutação pela qual passaram o eu, o homem e não o autor por detrás desse texto. - (é o parentese que temos de abrir para dizer (o) que somos, logo existimos e, que sem as máscaras, acreditarmos, na vivência do grande estilo. Como derretê-las? É possível tal plasticidade?)

No pico da altura – temível e terrível – nossa vertigem: a inocência de todas as idéias não corresponde a movimentação dos pensamentos. Ao caminhar na rua não sentimos falta? Sofremos da ausência de um grande toque? Escassos! Do que mesmo? Vestígios de coisas: uma voz se dirige a nós. Servirá para nossa orientação?

O estrangeiro do nosso corpo corresponde à verossimilhança de nossas indiferenças. Botemos, porém, a culpa na modernidade. O grande demônio. Sempre existirá a necessidade de erigir um demônio: a modernidade vista como substantivo concreto, sujeito determinante de nossas existências. Vazias. Ou apenas nos tornamos homens. Moles. Como se o destino, inerente, estivesse pregado ao nosso corpo. Onde mesmo? – Uma busca começará a ceder, intransponível. Nada muito além disso.

Antes de sairmos para a rua, perguntamos: há alguma coisa além do elevador. Talvez o poço, se ocorrer a queda. Entretanto, não há mais quedas, ou melhor, não podemos sofrê-las.

Não, não éramos assim, assim como. Mesmo? Ainda nos lembramos de vagas imagens. Mas como éramos. Como retornarmos à. E como sermos daqui para frente. Tornamo-nos estéries a ponto do ser gerar o nada? A ponto do ser germinar somente idéias?

E é apenas isso, antes da morte: uma frágil e delicada criatura.


26.4.08

[Palarva]

[Black forms on white, de Wassily Kandinsky, 1934]


Palarva

Na organicidade do meu corpo
vermes devoram
o fruto de minhas palavras.


25.4.08

[Delírios do homem enquanto pico]

[Folles Amour, de Lucien Clergue]


Delíros do homem enquanto pico
Fragmentos de um gorilinha


No pico: o surgimento do Éden. Ó! Grande Tótem! Egipcias sensações piramidais. Veias dilatadas. Imaginação. Tenho em meu sacrilégio, minha única religião. O verdadeiro. O mítico. Grosso modo universal. A carne. Aterrizo no paraíso perdido. Por quê? Delirante, avisto Adão e Eva. Observo-os. Nus. Comendo. A maçã, que tem cara de Marilyn Monroe. Mordo-a, arrancando um naco. Adão toca em Eva. Eva o chupa. Retribuição de carinhos. Humanos? Deus, sentencioso, parece não gostar. Deus, perdoe-me. Mulheres, numa espécie de jardim das delícias, correm desnudas. Árvores com seios no lugar de frutos. Cachoeiras que jorram orgasmos. Rosas que gemem. Plantas que ejaculam. Um bolo de mulheres começa a se desprender das paredes. Correm. Pulam. Saltam como coelhos. Peludas. Tocando uma nas outras. Tudo muito mútuo. Visão celestial. Estou. Estou descontrolado. Suor. Que molha. Gozo. Que fabuloso. Mulheres infinitas vão e vem, vem e vão. Loucas. Chupam-me. Línguas. Cabelos negros e compridos. Xoxotas. Delicadas. Sugadoras. Seios. Quadris. Pernas. Dedos. Uma bronha. Agora: um braço. Anestesiado.

23.4.08

[Versinhos a uma jovem prosadora]

[Olé, de Salvador Dalí, 1982]



Versinhos a uma jovem prosadora

Minha carinha,
nada mais vil,
mais infame, revoltante
(e também nocivo para a alma,
lembre-se da idéia do teórico:
a literatura é o mal)
do que em meio a vida,
em meio a heterogeneidade da vida
eu, um poetinha delicado,
me findar a compor versos.

Desnudando a carcaça
e expondo os brancos ossos da alma louca.

Nada mais inescrupuloso que,
dentro da vida, roda-viva
fazer das palavras
- e somente delas -

vida: uma outra vida.
Fazer da vida,
palavras.
E com elas,
s
o
l
i
d
ã
o
.


21.4.08

[Inventário das horas]

[Self-portrait, de Stanley Spencer, 1959]


Inventário das horas

De certa forma, o que me restou.
Contabilizo.
Pouco.

Uma manhã.
Um copo de gim.
Um cigarro fumado.
Um hamburguer frito nalgum horário do dia.
Duas xícaras de café. Broa e manteiga.
O sonho dos meus contrabandos.
O imposto de renda enviado às
15:47h em 20/04/2008.
Quinze reais no bolso da calça.
Uma meia jogada no corredor.
Cama desarrumada.
Louças empilhadas.
Toalha molhada.
Meia luz no quarto.
A polaquinha, de Dalton Trevisan,
sobre o criado mudo.
Uma pilha de provas de segundo grau
na mesa da sala.
Um filme brasileiro. Fernanda Torres nua. Rio de Janeiro.

Essas palavras vagabundas digitadas no word

E um espelho, no qual meu reflexo, em face dos últimos acontecimentos, começou a derreter.



20.4.08

[Inventário do homem normal]

[Reclining man with sculpture, de Francis Bacon, 1961]

[p/ Jackson Pizani]


Inventário do homem normal


O homem normal existe. O homem normal tem um corpo e uma cabeça na qual dois olhos duas orelhas um nariz e uma boca dentro da qual uma língua vinte e oito dentes e duas obturações. O homem normal pentea cabelos ondulosos. O homem normal se estende pelo pescoço abaixo um par de sovaco ralos pêlos dois bicos de peitos um tronco liso com costas vertebrais espinha dorsal dois braços curtos umbigo sujo um pênis murcho um saco escrotal pelancudo duas coxas com pêlos dois joelhos escuros duas pernas tortas dois pés com frieiras e dez dedos com unhas roídas. O homem normal termina nas extremidades. O homem normal tem uma boca pela qual entra objetos consumidos. O homem normal tem duas nádegas dentre as quais um ânus e pelo qual dejetos são expelidos. O homem normal contabiliza trinta e nove pintas no rosto mais catorze no peito uma na cabecinha do pênis cinco somando as pintas no par de pernas e quatro na testa. O homem normal espreme cravos que nascem do nariz adunco. O homem normal enfia um dedo no buraco do nariz e retira o pó ranhoso filtrado pelos pêlos. O homem normal introduz a meleca na boca. O homem normal engole a meleca. O homem normal almoça. O homem normal tem consciência de um intestino no qual ocorre a digestão. O homem normal acorda após a sesta com remela nos olhos cabelos desalinhados corpo amassado bafo na boca. O homem normal bebe água. O homem normal se refresca com o líquido bebido. O homem normal completa quarenta anos calça trinta e nove mede um e setenta com massa corporal de setenta quilos. O homem normal envelhece diante o espelho. O homem normal teme o câncer de próstata. O homem normal atentou tamanho o dedo do médico particular. O homem normal da cor branca. O homem normal grau colado profissionalizou em contabilidade. O homem normal é denominado de o contador.


19.4.08

[Das boas verdades]

[Self-portrait, de Marie Laurencin, 1906]


Das boas verdades
(ou o poetinha vertendo tradições)


Você não precisa matar Deus,
muito pouco execrar a mamãe
para dizer:

- Pô! tô aqui, meu!



18.4.08

[Buraco negro]

[Message from a friend, de Joan Miró, 1964]

[p/ Vinicius Morelit]


Buraco negro


Você pode consultar o psicólogo,
praticar yoga,
converter-se ao budismo
e referendar Nietzsche.

Mas,
Ô! rapá!
não tem mais volta, não.


17.4.08

[Delirius sexx - em promoção]

[Hatstand, de Allen Jones, 1974]


Delirius sexx - em promoção

Sex & Hot - quentes e molhadas
Três horas de sexo e ação!
Safadas, úmidas e molhadinhas...
Ninfetas em fúria.
Regininha, a ninfeta total - em posições nunca antes.
Fernandinha, a inexorável.
Inimagináveis.

- Vâmo dar uma conferida, poetinha?


16.4.08

[ ! ! ! ]

[Self-portrait, de Andy Warhol, 1981]

[!!!]

Você saca como a coisa pega de verdade. Eu. Você. Também.
Tirou o diploma,
mó fácil!
Dificil mesmo é acreditar nos pontos cegos, em tantas ideologias, nas malditas voltas dos discursos, nas ruas, na esquizofrenia tragada, gente rindo, ali, ó!!, passou agora. Ouviu? Eu já disse que em frente de casa passa uma máquina similar a um robô de brinquedo, meio caminhão? Apelidamos de o monstrinho aqui, em família. Trocando em miúdos e sendo mais realistas é uma máquina que passa limpando a fuligem dos automóveis e entra no túnel e desaparece. A máquina é melancólica, não eu. Não são as coisas agora que possuem sentimentos? Eu? Uma vergonha danada. Tá vendo, comecei a conversa comigo mesmo, não é mesmo, poetinha? Poetinha, vem cá, tá fazendo a lição de hoje?

[O caderno do poetinha]


Populismo:

* Tutelar e favor
* Priva os tutelo do conhecimento

* Poder canônico
* Transcendente

* Dissimulado - Capitolina. Marcada pra morrer. Com uma caneta vermelha, um círculo em volta de Capitu.
* Governo = Família

- Poetinha. Cê prestou a atenção na critica dialética que há nessas raízes teológicas do populismo e mito aquela coisa, da Marilena Chauí, com relação àquele quadro lá em cima, do Andy Warhol, poetinha, presta a atenção, tá vendo? Qualquer porcaria vai sair comprado por aí não, hein.
- Sim, balança a cabeça, quem, eu ou você? Poetinha?
- Ai! que gracinha. Meus parabéns.

- Êh!


[Dos grandes autores]

[Georges Perec, 1978]

[...]

Você permanece no seu quarto, sem comer, sem ler, quase sem se mexer. Olha a bacia, a prateleira, os joelhos, o seu olhar no espelho trincado, a tigelinha, o interruptor. Escuta os rumores da rua, a gota d'água na torneira do patamar, os barulhos do seu vizinho, seu pigarro, as gavetas que ele abre e fecha, seus acessores de tosse, o sibilar da chaleira. Você acompanha, no teto, a linha sinuosa de uma pequena fresta, o itinerário inútil de uma mosca, a progressão quase perceptível das sombras.

Esta é a sua vida. Isto é seu. Você pode fazer o inventário exato de sua mísera fortuna, o balanço preciso do seu primeiro quarto de século. Tem vinte e cinco anos e vinte e nove dentes, três camisas e oito meias, alguns livros que não lê mais, alguns discos que não ouve mais. Não tem vontade de lembrar-se de outra coisa, nem de sua família, nem de seus estudos, nem de seus amores, nem de seus amigos, nem de suas férias, nem de seus planos. Viajou e nada trouxe de suas viagens. Está sentado e quer apenas esperar, esperar apenas até que não haja mais nada a esperar: que venha a noite, que soem as horas, que se vão os dias, que as lembranças esmaeçam.
Você não revê os amigos. Não abre a porta. Não desce em busca de correspondência. Não devolve os livros que tomou emprestado da Biblioteca do Instituto Pedagógico. Não escreve a seus pais.
Você sai somente ao cair da noite, como os ratos, os gatos e os monstros. Vagueia pelas ruas, se esconde nos cineminhas imundos dos Grands Boulevards. Às vezes caminha a noite toda; às vezes dorme o dia inteiro.

[...]

Seus amigos se cansaram e não batem mais à sua porta. Você quase não anda mais pelas ruas onde poderia encontrá-los. Evita as perguntas, o olhar daquele que o acaso põe às vezes no seu caminho, recusa a cerveja ou o café oferecidos. Apenas a noite, o quarto o protegem...

[...]


Você não tem o hábito e não tem vontade de estabelecer diagnósticos. O que perturba, o que o emociona, o que lhe dá medo, mas que às vezes o exalta não é a rapidez da sua metamorfose, mas ao contrário, justamente, o sentimento vago e angustiante de que não há novidade, que nada mudou, que você sempre foi assim, mesmo que saiba disso somente hoje: aquilo, no espelho trincado, não é o seu novo semblante, são as mascaras que caíram, o calor do seu quarto as derreteu, o torpor as descolou. As máscaras do caminho certo, das belas certezas. Durante vinte e cinco anos, você nada soube daquilo que hoje é o inexorável? Nunca viu falhas naquilo que considera ser sua história? Tempos mortos, quedas de pressão. O desejo fugidio e pungente de não ouvir mais, de não ver mais, de permanecer silencioso e imóvel. Os insensatos desejos da solidão. Amnésico errante no País dos Cegos: ruas largas e vazias, luzes frias, rostos mudos sobre os quais deslizaria o seu olhar. Você nunca seria atingido.

[PEREC, Georges. Um homem que dorme. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p.18-19 e 20-21]


15.4.08

[Da canção de ninar]

[Ana Cristina Cesar 1952-1983]

Da canção de ninar
(ou das pequenas inspirações)

Canta, ó musa,
não a ira,
mas a lira
para o poetinha
entoar.


14.4.08

[Vida privada]

[Chair, de Allen Jones, 1969]

Dos direitos autorais
Cláusula - da venda de imagem

Ao escrever polaca chapada, o autor se declara ciente de seu preconceito e criação de uma imagem pejorativa do polaco?
- Assine aqui.
- Hum! - pensativo.
- E se caso sabotarmos uma mulata bem louca, muito louca, o autor, negocia?


- Como é que fica, dotô! Leva ou não leva?


[Las desaventuras del poetito arlequin]

[Buses, de Allen Jones, 1964]


El poetito leyendo Verlaine. Lucidinho

Como andan os corpos docentes, perguntam-lhe.

- Decadent!



[Das tentações]

[No title, de Allen Jones, 1977]

Queima de estoque

- , Senhor. Livrai-me!



13.4.08

[Repiques de Tambor]

[Walt Whitman in Camden, New Jersey, de Thomas Eakin, 1887]

Repiques de Tambor
(folhas soltas)

JUVENTUDE NÃO É O QUE TEM A VER COMIGO

Juventude não é o que tem a ver
comigo, delicadeza tampouco,
não tenho tempo a jogar em conversa,
fico meio sem jeito no salão,
nem elegante nem dançarino,
na roda dos eruditos me sento
constrangido e calado,
pois eu não tenho jeito para a erudição,
não tenho jeito para a sapiência e a distinção
- embora existam duas ou três coisas
para as quais tenho jeito:
tenho dado de comer aos feridos
e apaziguado muito soldado morrendo,
e enquanto espero nos intervalos
ou em plena campanha
tenho composto estes cantos.

[WHITMAN, Walt. Folhas das das folhas de relva. 5º ed. São Paulo: Editora brasiliense, 1983. p. 106]

10.4.08

[O vôo poético do poetinha errante]

[Honey and sleep, de Francesco Clemente, 1993]


O vôo poético do poetinha errante
(rasantes no Largo da Ordem ao anoitecer)

Com a vida tresloucada,
o poetinha queima delírios urbanos
e despenca

(pro-
fun-
da-
men-
te)

no colchão de plumas
da melancolia.


9.4.08

[Con verso animal]

[Peasant life (La vie paysanne), de Marc Chagall, 1925]


Repito: não me atraía imitar os homens; eu imitava porque procurava uma saída, por nenhum outro motivo.

[Franz Kafka - Um relatório para uma academia]

Se me perguntassem o que é um animal, eu responderia: é o ser à espreita, um ser, fundamentalmente, à espreita.

[Gilles Deleuze - O abecedário de Gillles Deleuze]


Con verso animal
(ou o poetinha refutando as idéias teóricas)

Os membros da Academia
que me perdoem,
mas há uma força sobre-
natural cavalgando meu corpo.


8.4.08

[Das relações extratextuais]

[La Magie Noire, de René Magritte, 1935]

[...]

A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

[Carlos Drummond de Andrade]


7.4.08

[Dos grandes autores]

[Henry Miller, 1938]
[...]

"Ninguém consegue seguir uma linha reta através da vida. Muitas vezes deixamos de saltar do trem na estação certa - ou descarrilhamos. As vezes nos perdemos, ou levantamos vôo e desaparecemos no ar como fumaça. Outras vezes, ainda, fazemos viagens tenebrosas sem sequer sair do lugar onde estamos. Existem pessoas que vivem toda a experiência de uma vida em poucos minutos. Outras esgotam diversas vidas durante sua permanência na terra. Algumas germinam como cogumelos, enquanto que outras escorregam e caem, inultimente, atoladas em seus caminhos. O que ocorre de momento a momento na vida de uma pessoa é insondável. Ninguém pode contar tudo o que aconteceu em determinado momento de sua vida, por mais curto que esse momento tenha sido. É nesse domínio do desconhecido que ocorre a verdadeira luta e é somente esse desconhecido que me interessa. Ao descrever fatos, acontecimentos, relações humanas e até mesmo simples bobagens, estou sempre me esforçando para que o leitor sinta a infiltração constante desse reino sombrio e misterioso fora do qual nada poderia acontecer. Quando comecei a escrever sabia disso, mas de maneira vaga, confusa. Estava certo de que não somente a minha vida, mas como a de qualquer outro homem é interessante (palavra fraca essa!) desde que tenhamos o trabalho de pesquisá-la. Compreendi que narrá-la seria importante (palavra falsa) e elucidativo - para mim e para outras pessoas semelhantes ou diferentes de mim. Afinal de contas, a arte de narrar é apenas mais uma das formas de comunhão. Mas apesar (ou será que foi por causa disso?) da minha seriedade, persistência e assiduidade, tudo o que consegui produzir foram uns poucos abortos que, felizmente, nunca foram publicados. Durante esse período de aprendizagem, os acontecimentos ocorriam com tanta rapidez e em tal profusão, que o escritor dentro de mim submergiu, afogou-se. Sei agora que tudo aquilo que escrevi até o Trópico de Capricórnio foi um esforço para começar a escrever, para iniciar a "confissão" já tão retardada. Em outras palavras, até então eu estava preparando o terreno."

[MILLER, Henry. O mundo do sexo. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Americana, 1975. p. 78-79]


[Vênus]

[The birth of Venus, de Sandro Botticelli, 1486]


Vênus
(ou o poetinha sofrendo de concepções freudianas)

Tão distante,

que o desejo
virou clausura da
fantasia

e alimentou
(boca faminta)

a lira angustiada
do meu corpo
libidinal.


5.4.08

[Paesiana]

[Self-portrait, de Marc Chagall, 1968]


Paesiana
Rascunho no pequeno caderno do aluno

Para montar um poema
(na falta
das amantes e dos amigos),

Giuliano:

esfaqueia
esfaqueia
o coração.

Depois,
embrulhe-o num trapo
e repita o gesto

em praça pública.


4.4.08

[O equilibrista]

[The blue circus, de Marc Chagall, 1950]

O equilibrista

Como se eu palmilhasse

- artificioso -
o sistema nervoso,
ou pernoitasse
meio assim animal

Logos:

seria você,
o equilibrista
no arame farpado.


3.4.08

[Dos grandes autores]

[Les yeus clos, de Odilon Redon, 1890]

IX

Tônio Kroeger estava sentado, escrevendo do Norte para Lisaveta Ivanovna, sua amiga, conforme prometera:
"Querida Lisaveta, lá embaixo em Arcádia, para onde em breve voltarei", escrevia. "Aqui está então algo parecido com umar carta, mas talvez a decepcione, pois penso escrever em termos gerais. Não que eu não tivesse alguma coisa para contar, ou, a meu modo, não passasse por uma outra experiência. Lá em casa, em minha cidade natal, até quiseram prender-me... mas isto ouvirá pessoalmente. Há dias, em que eu prefiro dizer, de uma maneira boa, generalidades, em vez de contar histórias.
Lembra-se ainda, Lisaveta, de que um dia me chamou de burguês, um burguês errante? Assim me chamou numa hora na qual, persuadido por outras confidências que deixara escapar antes, confessei-lhe meu amor para o que eu chamo de vida; e pergunto-me, se você sabia quão perto atingira a verdade, e quanto minha burguesia e meu amor pela "vida" são idênticos. Esta viagem me deu o ensejo de pensar sobre isso...
Meu pai, sabe, era de um temperamento nórdico: considerado, minucioso, correto, por puritanismo inclinado à melancolia; minha mãe, de indistinto sangue exótico, bonita, sensual, ingênua, ao mesmo tempo displicente e apaixonada e de um dezmazêlo impulsivo. Sem dúvida alguma, foi esta uma mistura que encerrava extraordinárias possibilidades e extraordinários perigos. O resultado foi este: um burguês, que se perdeu na arte, um boêmio que sentia saudades da boa educação, um artista com a consciência pesada. Pois a minha consciência burguesa é que me faz ver em toda arte, todo extraordinário e todo gênio, algo profundamente duvidoso, o que me enche desta amorosa fraqueza para o simples, singelo e agradável-normal, o não-genial e decente.
Estou entre dois mundos; não me sinto à vontade em nenhum dos dois e por isso tenho um pouco de dificuldade. Vocês artistas me chamam de burguês e os burgueses sentem-se tentados a prender-me... não sei qual dos dois me magoa mais. Os burgueses são bobos: Vocês, adoradores da beleza, porém, que me dizem ser eu fleumático e sem saudades, deviam imaginar um dom artístico tão profundo e tão do princípio e do destino, que nenhuma saudade lhe pareça ser mais doce e digna de ser sentida do que aquela pelas delícias da trivialidade.
Admiro os soberbos e frios que se aventuram nos caminhos das grandes, das demoníacas belezas e desprezam o "homem", - mas não os invejo. Pois se alguma coisa é capaz de fazer de um literato um poeta, então é este meu amor burguês pela humanidade, pela vida e pelas coisas em comuns. Todo calor, toda bondade, todo humor, vêm dele e quer em parecer que seja ele aquele amor do qual está escrito que, alguém poderia falar com língua humana angelical e, no entanto, sem ele nada mais ser que um bronze soante e guizo sonoro.
O que fiz é nada, não muito, quase nada. Farei coisa melhor, Lisaveta; - isto é uma promessa. Enquanto escrevo, o mar murmura até aqui e eu fecho os olhos. Olho para um mundo inato, quimérico, que quer ser ordenado e culto; olho para um formigar de sombras com aspecto humano que acenam para mim, a fim de que os esconjure e liberte: Sombras trágicas e cômicas e algumas as duas coisas ao mesmo tempo, - e a estas sou muito delicado. Mas o meu amor mais sentido e secreto, pertence aos louros e de olhos azuis, aos vivos claros, aos felizes, gentis e comuns.
Não repreenda este amor, Lisaveta; ele é bom e fértil. Contém saudade e uma inveja melancólica, um pouquinho de desprezo e uma felicidade de absoluta pureza".

[MANN, Thomas. Tônio Kroeger. São Paulo: Boa Leitura Editora S.A. p. 108 - 110]

FINE


2.4.08

[Épica]

[The youth of Bacchus, de William Adolphe Bouguereau, 1884]


ÉPICA

A pica grega


[Antropofagia literária]

[Large interior, de Lucian Freud, 1973]

Na reabertura do Porão Loquax, a surpresa ficou por conta da performance do banquete de palavras com a rapaziada do Pó&teias e Epopéia. Adriano Smaniotto, Carlos Souza, Walter Martins, Cristiano Faria e Ricardo Pozzo fizeram, literalmente, a cabeça neste espetáculo surreal. A mesa, que para bem ou para mal, remetia diretamente à capa do disco Secos & molhados, nos chamava para o abocanhamento literário. Cabeças brancas, pão, alface e banana davam-nos a poesia nossa de cada dia: Tomara que um dia de um dia seja/ Para todos e sempre a mesma cerveja/ Tomara que um dia de um dia não/ Para todos e sempre metade do pão/ Tomara que um dia de um dia seja/ Que seja de linho a toalha da mesa/ Tomara que um dia de um dia não/ Na mesa da gente tem banana e feijão...
Depois, com a abertura do microfone ao público, outros cabeçudos [sic!] mostraram a cara e soltaram a voz.
Devo admitir que morto-vivo estes dois textos salpicaram do pé!:


Psicanálise dos incluídos

Você não pode comer a mamãe
Tampouco decepcionar o papai
Não ouse estuprar a ninfeta
Nem queira dar sua roela

Se usar coisas ilícitas
Se esconda
Se quiser sublimar sua fraqueza
Vire polícia

Só não queira dizer buceta
Onde todos dizem vagina
E cuidado com as aparências
Nada de quilos de gordura
Ou cocaína

Chegue no trabalho mais cedo
Mas cuide pra não derrubar o punhal
Que traz do chefe o apelido

Aprenda a ter um deus
E uma crença
Ainda que ambos te ensinem
A ser reprimido

Nunca coma a mulher do amigo
Nem coma o amigo que é uma mulher
Mas não fique muito sem comer
Que isso que é ter umbigo

Aprenda a dizer coisas
Como tudo bem, que bom
E também acho
Esqueça palavras como que merda,
Vá se foder, que saco

Até que um dia
O tempo
Mais sábio
Porque sem terapia ou escola
Para você ver que a vida foi embora

[Adriano Smaniotto]

**

Parado na paródia


Poema de sete cores todas da mesma cor

quando nasci
um pintor torto
desses que cortam as orelhas
disse
vai tinta!
ser guache na vida

[Ivan Justen Santanna]



1.4.08

[A volta]

[Portrait of a young girl, de Bill Brandt, 1955]

Lá vou eu de novo como um tolo/ Procurar o desconsolo/
Que cansei de conhecer/ Novos dias tristes, noites claras/
Versos, cartas, minha cara


[Retrato em branco e preto - Tom Jobim e Chico Buarque]

A volta

Volto
caminhando
sobre a avenida em obras

- Cuidado! Precipitação a 100 m.
É o coração que diz? -

a observar,
muito além das máquinas
extraviadas do meu espírito,
os prédios abandonados de dois,
três pavimentos
a ruirem
sob os meus desejos.